Famílias... Tão diferentes à
primeira vista, mas infinitamente iguais no íntimo. Salvo por alguns membros
dissidentes, uma família se define pela cumplicidade. “Almoça junto todo dia,
nunca perde essa mania”. Minha última dobradinha no cinema está imersa nos
valores dessa instituição. Duas histórias completamente opostas tratando, cada
qual a seu modo, das farinhas de mesmo saco. “Família... Cachorro, gato,
galinha”.
DEUS DA CARNIFICINA (2011), de
Roman Polanski
Meu primeiro pensamento ao final
da sessão foi “O que Almodóvar faria com esse roteiro?”. Foi algo pertinente,
pois o rocambole de situações tragicômicas e emoções à flor da pele se
encaixariam perfeitamente na filmografia do espanhol. O cinema de Polanski
nunca havia me chocado tanto com o riso desde quando o próprio se travestiu em “O
Inquilino”, ou quando Peter Coyote ridiculamente imitou um leitão numa
sequência de humilhação fetichista em “Lua de Fel”.
O filme começa com um plano
contemplativo, sobre o qual são exibidos os créditos iniciais. A imagem nos mostra
um parque nova-iorquino... Crianças brincam, barcos passam ao fundo. Não me
espantaria se Madonna fizesse uma breve aparição trajando camisa listrada,
assoviando “Papa Don’t Preach”, já que o confronto de filosofias em família é o
conceito deste filme. Por fim observamos um garoto acertar outro na cara usando
um pedaço de pau.
A história então começa! Penelope
e Michael Longstreet são os pais de Ethan, o garoto agredido por Zachary, filho
de Nancy e Alan Cowan. A família de agressor elabora uma visita à família de
agredido para conversarem, entre pais, sobre que medidas tomar em relação aos
garotos. O encontro, que a princípio é impossível ser mais polido,
transforma-se gradativamente num embate de perspectivas que, num contexto
imaginário, idealizei como uma guerra entre os Dursley e os Corleone.
OS LONGSTREET. Penelope é dona de
casa dedicada... Prepara receitas gourmet, coleciona catálogos de arte, as
tulipas que ornamentam sua sala vieram exclusivamente da Holanda. Dedicada aos
estudos sobre a miséria da sociedade africana, acredita piamente na educação
humanista e no amor à arte como as chaves para o sucesso pessoal dos filhos.
Essa mãe complacente é vivida por Jodie Foster, que emprega à personagem uma
fragilidade raramente vista em seus trabalhos anteriores. Michael é John C.
Reilly, o eterno Sr. Celofane, em papéis coadjuvantes de maridos oprimidos pela
opulência racional das mulheres.
OS COWAN. A Nancy de Kate Winslet
é incrivelmente imprevisível e histérica, como uma versão adulta de sua
Clementine Kruczynski de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. Já o Alan
de Christoph Waltz é menos feroz, mais próximo da aura de moleque zombeteiro,
ainda que mantenha seu ar nazi-impiedoso de “Bastardos Inglórios” que,
particularmente, me espanta. Ambos concordam que o filho merece algum tipo de
punição, mas estão longe de simpatizar com os métodos e termos empregados,
sobretudo, por Penelope Longstreet.
POLANSKI. Com direção
descontraída e certeira, o realizador retorna à glória adormecida desde “O
Pianista”. Neste enredo à la “O
Anjo Exterminador”, que se passa integralmente na sala dos
Longstreet e em que diversas situações impedem que a reunião termine sempre que
desejada, culminando na queda das máscaras e bons modos, Polanski exerce sobre
as neuróticas personagens e os espectadores um dos aspectos mais fascinantes em
sua filmografia: a claustrofobia nervosa, sobretudo nesse cárcere social
chamado apartamento.
Nesse quesito, o cineasta acumula
grandes sucessos. Desde os primeiros anos de seu trabalho, dedicou-se à
exploração dos vícios humanos, observados do ponto de vista mais íntimo. O
apartamento é o símbolo máximo dessa carreira, o lar de suas personagens em
conflito, de onde se observa o que há de vil lá fora e o que apodrece por
dentro... O espelho de uma humanidade acuada, amedrontada, que se perde no
próprio medo e nas dúvidas e solidão, deteriorando-se nesse pesadelo construído
em forma de lar.
Reflexo lógico da vida de um
diretor que passou a existência em fuga, sempre privado da forma mais singela
de liberdade. Polanski nasceu em 1933, judeu sobrevivente do holocausto em 1945,
teve a mulher gestante brutalmente assassinada em 1969, foi condenado à prisão
domiciliar na Europa até pouco tempo, por um suposto abuso sexual. Marcado por
perdas e sofrimento, não deixou de se tornar e se manter um profissional
brilhante, um grande artista.
Sobre a vida sutilmente
encarcerada, produziu tratados profundos em análises psicanalíticas e
estéticas. Destaco, sobretudo, “Repulsa ao Sexo”, “O Bebê de Rosemary”, “O
Inquilino” e “O Pianista”. Relatos em que o apartamento se transforma na
encarnação dos pavores mais íntimos de seus moradores. O mesmo fator torna valioso
“Deus da Carnificina”. O espetáculo da degradação humana, mesmo arrancando
risos, a ida ao inferno, todos os círculos...
SOMBRAS DA NOITE (2012), de Tim
Burton
Burton vive sua fase mais popular
no cinema! Temo que realmente tenha se alçado ao mais novo nome do cinema de
populacho. Tenho calafrios em pensar que a sequência de “Os Fantasmas Se
Divertem” pode se tornar mais um exemplar, perdoem-me a sinceridade, cagado na
filmografia recente do exótico Tim... Ou seria a exaustiva repetição de Johnny
Depp como protagonista, ininterruptamente desde 2005, a causa de tamanho
relapso? Francamente, Burton estacou desde “A Fantástica Fábrica de Chocolate”.
A fotografia leitosa, os rostos extremamente brancos. O cineasta nunca perdeu o
tato para a direção de arte, a escolha do elenco, a confiança nos acordes de
Danny Elfman, o próprio dom da direção. Mas ultimamente parece ter se tornado
fantoche dos critérios povão dos
produtores e peripécias mal estruturadas por roteiristas contratados. A escolha
de Depp também incluída no aspecto povo...
“Piratas do Caribe” o lançou aos papéis mais bizarros de sua carreira. O que
não considero interessante, já que todos acabam por parecer a mesma entidade
devido à proximidade dos trabalhos e semelhante grau de excentricidade nas
personagens. A voz, os trejeitos... Em Burton especialmente, já que o diretor
amou a fotografia digital e não passa mais um filme sem fazer com que os atores
pareçam ter recebido um banho de leite, sobretudo Depp. O ator caiu no gosto
popular com “Piratas”. Seu nome chama mais atenção do que qualquer outra coisa.
Atrai principalmente adolescentes, ou aquele espectador sem idade específica
que se satisfaz apenas em ver um Depp afetado e piadista em situações que
parecem citar “Chapolin”.
“Sombras da Noite” foi, a
princípio, uma surpresa. Eu esperava muito menos e quase desisti de assistir na
última hora. Seria um ótimo filme se não tivesse me dado três incômodos, sendo
que dois se situam justamente no clímax e foram capazes de murchar tudo que eu
já havia adorado na projeção.
É a história da família Collins
de Collinsport, desgraçados por uma maldição. Família de viúvos e filhos com
hábitos estranhos, como conversar com os mortos. O feitiço em questão abre o
filme e nos apresenta o protagonista, Barnabas Collins ‘Depp’, que ao partir o
coração de uma bruxa é transformado em vampiro e enterrado nos arredores de seu
povoado no século XVIII. Quase duzentos anos depois, a jovem Victoria Winters segue
jornada à Collinsport para se tornar a nova tutora de David Collins, o mais
jovem da família. A década é 1970 e nesse quesito o filme é impecável! A trilha
é deliciosa, bem como as representações da época nas atitudes, figurino,
palavreado... Helena Bonham Carter está no melhor estilo Joana Fomm em “Dancin’
Days”. Formidável!
Nesse cenário disco, o imortal Barnabas é
acidentalmente desenterrado. Retornando à sua mansão, abre o jogo sobre sua
condição com Elizabeth Collins, a atual chefe da família vivida pela eterna
felina Michelle Pfeiffer. Instalado por ela como um primo chegado da
Inglaterra, Barnabas usa de sua fortuna intocada em um cofre secreto para
reestruturar os negócios da família. Paralelamente utiliza seus dons
sobrenaturais para influenciar os cidadãos de Collinsport e vingar-se da também
imortal Angelique, a bruxa que o amaldiçoou.
O filme caminha muitíssimo bem...
Boa dose de suspense, humor, tensão, rock, folk e composições épicas. Barnabas
é uma bela peça na filmografia de Burton, carregado de caligarismo. Me encantei
com seu modo de posicionar as mãos enquanto dorme, ou quando dorme de cabeça
para baixo... Um morcegão, de fato.
Agora os incômodos. Primeiro a
cena de sexo entre Barnabas e Angelique... Muito do que se passou depois me fez
aliviar a gastrite iniciada nessa sequência. Se fosse a única coisa avacalhada,
eu aplaudiria no final. A cena abusa dos movimentos rápidos de câmera, para
demonstrar a intensidade do ato sem burlar a classificação indicativa. Pretendeu
ser cômico, mas não dei uma risada. Muitos riram, mas eu não. Mesmo! Achei
palhaçada, cúmulo do exagero, apelo desnecessário àquela altura do filme, como
se tivesse obrigação de fazer com que as crianças se distraíssem com essa
situação tola, no lugar de realmente fazer algo sensual e marcante. Não
precisava ser explícito, mas que tivesse o charme à altura de Eva Green.
Poderia ser a nova lambida da Mulher-Gato se não tivesse se tornado um pastelão
de doer os olhos e ouvidos.
Segundo incômodo. Não darei
nenhum detalhe, pois se trata precisamente do clímax, a sequência final em que
tudo se decide! Novamente, poderia ter sido mais simples e marcante. O que
aconteceu foi um carnaval de eventos, pautados por um turbilhão de efeitos
especiais. Senti como se aquilo fosse feito pela obrigação de ter efeitos
especialíssimos no filme, como se fizessem muita diferença. Não era preciso
tanto. Ação corporal e um diálogo triunfante bastariam... Mas não. Muitos
corpos e coisas voando, objetos ganhando vida, um fantasma que não precisava
ter aparecido só pra ser mais um efeito. Isso sem falar na personagem que
revela, desnecessariamente nesse último momento, que é um lobisomem. Além de
parecer mais uma desculpa para entreter criança e usar de tecnologia, a
performance não foi convincente. A pessoa em questão estava tão bem na
personagem durante todo o filme, mas naquele momento parecia estar encenando
uma peça escolar. Vergonhoso...
Por fim, no lugar de terminar o
filme com uma última imagem bem composta, acompanhada de uma fala que amarra princípio
e fim, o diretor chutou o balde e colocou mais uma sequência que poderia até
vir depois dos créditos finais. E eu disse “poderia”. A informação nessa
ceninha é extremamente óbvia para quem se atentou aos menores, e este nem foi
tão discreto, detalhes do filme. Pareceu artimanha de produtor, como se
quisesse aguçar a expectativa de uma continuação. A cena é rápida, mas aniquila
a recepção da sequência anterior, que é bonita, dramática, realmente o final do
filme, o final da história.
Como não vejo sentido em dar
nota, estrelinhas, para produtos de arte, simplesmente digo que me decepcionei.
Se fosse juntar tudo que me incomodou, deve durar menos de 20 minutos. O filme
tem 113 minutos, mas mesmo assim, nas circunstâncias dos erros, não posso
considerar como um trabalho digno de Tim Burton. Pareceram coisas exigidas para
chamar atenção. Uma criança ou o espectador comum podem ficar alvoroçados com
isso, algo que chama atenção pelo excesso, porém um mau excesso, um desfile de
artifícios pobres. Se o filme fosse montado de novo sem esses exageros gráficos
e participações pífias no clímax, eu iria amar. Espero que Burton se atente
daqui em diante e volte a ser o verdadeiro criativo por trás de tudo em seus
trabalhos. Que se lembre da premissa de tocar seu público com os sentimentos e
não apelar tanto para as modinhas de Hollywood.
É com prazer imenso que te leio aqui pela primeira vez.Não vi Sombras da noite,obviamente me abstenho de comentar sobre, seja concordando ou discordando de você. Impressionada com seu jeito de escrever sobre cinema moço.
ResponderExcluirMal posso esperar pra ver Carnage! Tô sentindo saudades da claustrofobia polanskiana :) Já sobre Dark Shadows... confesso que minhas expectativas foram a quase zero só de ver o trailer. Tenho medo do rumo que Burton e Depp estão tomando. Lindo blog, Gabe! Vou acompanhar ;D
ResponderExcluirMuito bem falado! (sobre Sombras da Noite)
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